Encontrei, por esses dias, num sebo, o livro de um poeta do qual nunca tinha ouvido falar, Joan Brossa (1919-1998) um poeta catalão que passou pelo Brasil em 1993. Um livro publicado em 2005, em edição de capa dura pela Ateliê Editorial. Consta nele uma introdução à vida deste poeta, intitulada "Poesia para ser vista" de Glória Bordons, e outra “Joan Brossa e a Poesia Concreta” por Haroldo de Campos.
Assim, chancelado, fica difícil não tê-lo em alta consideração!
Para Glória Bordons: “Brossa não teve outra profissão além da prática da arte, sobretudo a poesia (escrita, visual ou cênica). Foi um artista dedicado exclusivamente à criação poética. Sempre em língua catalā, literariamente, fez bandeira do seu menestralismo, com uma postura radicalmente marginal. Entre os seus referentes, destacam-se nomes como Wagner, Fregoli, Salvat-Papasseit, Rimbaud e, sobretudo, Foix. Ele mesmo se definiria como “neo-surrealista”, um artista que combina a abstração com a realidade. Brossa nega discursividade lógica a e joga com as palavras e com as associações fônicas. O centro cabal da sua poesia é a palavra. É no entorno deste elemento que ele organiza poema. Utiliza as palavras pelo que há de objeto nelas e pela possibilidade de sua representação visual. Por outro lado. utiliza linguagem coloquial como instrumento para provocar efeitos inesperados quando a descontextualiza.”
Os dois poemas (abaixo) nesta brevíssima seleção de sua vasta obra despertaram uma alegria inesperada, atenuaram o prisma vago e indefinido que sustenta osmeus próprios poemas.
Estes versos, como
uma partitura, não são mais
que um conjunto de signos para
decifrar. leitor do poema
é quem executa.Hoje,
porém, deixo
meu espírito no
seu estado natural. Não
o quero agitado por pensamentos
ou idéias.
e
O TEMPO
Este verso é o presente.
O verso que vocệ leu é passado
— já envelheceu depois da leitura.
O que resta do poema é futuro,
que existe fora da sua
percepção.As palavras
estão aqui, se você as leu
ou não. E todo o poder terrestre
não pode mudar isso.
Ambos se encaixam perfeitamente como emblema de todos os processos poéticos que tenho levado adiante. E, com isso, me interessei por sua obra, que aliás é fantástica e muito numerosa. Um conjunto de poemas seus intitulado "Poesia Rasa" preenche nada mais do que 17 livros! Ao que parece ele foi poeta em tempo integral.
A minha identificação com esse dois poemas procede do fato de eu viver poesia “aos tropeços”; algo que eu poderia chamar de “solavancos poéticos”. A cada encontro que tenho com “palavras por aí” toda uma constelação poética emerge a volta — o centro dos meus poemas é uma (ou algumas) palavras, de modo que cada verso constitui um agregado sonoro de constelações que orbitam uma em torno das outras; são sistemas estelares entrelaçados, para usar aqui uma metáfora do grande compositor da vanguarda paulistana, Almeida Prado (1943-2010) e sua obra monumental para piano “Cartas Celestes”. Tal como Brossa, meus poemas envolvem a execução como um “conjunto de signos a decifrar”.
Compor poemas — porque antes de tudo me fiz na música — são 40 segundos de alucinação; e logo me dou conta de que são estruturas linguísticas descoordenadas, díspares num embate entre significantes. Pelo menos eu sinto assim.
A brincadeira com 40 segundos é porque, passado um minuto, a partir do momento que escrevo um verso, a minha primeira vontade é relegá-lo ao limbo, de tão inócuo que se me afigura, sobretudo, nos dias atuais, em que a banalidade e a indiferença dão forma e substância à precariedade estrutural da recepção de poesia nas redes. Porém, e essa raiva, por assim dizer, misturada ao devaneio na falta de conexão e clareza, é o que me move a tentar lapidá-lo e, assim, obter um sentido possível, firmar um horizonte ainda que móvel.
Por exemplo, esse poema que abre o meu caderno de 2018, “Com Olhos de Menino Mudo”, uma estranha mistura entre as atmosferas marítimas de Vicente de Carvalho (1866-1924) e o corte à frio, violento, de Giuseppe Ungaretti (1888-1970).
a subida da serra me decompõe
subida fria, apaga-mee para reconstituir os fragmentos
— e as paisagens —
à luz de horizontes tremidos
distâncias incorrigíveisdas portas d’água até a enseada
um braço de mar escondido.
Ambas as violências, a declarada de Vicente de Carvalho (contra os nativos) e a fragmentação sintática de Ungaretti, são mais que evidentes. No primeiro, encontramos um comentário em nota introdutória, intitulado, “antes do versos” no livro de 1908 “Poemas e Canções.”
“O movimento atual para os grandes quadros objetivos, à parte outras causas mais profundas, desponta-nos como uma reação do nosso sentimento, a crescer, paralelamente, com o próprio rigorismo prático da vida. Esse fugir ao racionalismo seco das cidades, que até geometricamente se nos desenha nas ruas retangulares, nos quadrados das praças, nos ângulos diedros das esquinas, nas pirâmides dos tetos, nos poliedros das casas, nos paralelepípedos dos calçamentos e nas elipses dos canteiros, onde é tudo claro, matemático, compreensível, e as inteligências se nivelam na evidencia de tudo, e as vistas se fatigam na repetição das formas e das cores, e os ouvidos se fatigam no martelar monótono dos sons, e a alma se fatiga na invariabilidade das impressões e dos motivos — vai se tornando a mais e mais imperioso, à medida que a civilização progride. O povo mais prático e mais lúcido do mundo, é o que por ele mais irradia à caça do pinturesco. Não há neste momento em Chamonix ou num rincão qualquer da África Central, nenhuma página vigorosa da natureza onde se não veja, rijamente empertigado, um ponto de admiração: o inglês!”
“Além disto, só o pensamento atual pode animar a alma misteriosa das cousas, num consorcio, que é a definição da verdadeira arte. O nosso selvagem…
Que dormia tranquilo um sono descuidado,
Passivo, indiferente, enfarado talvez
Sob o mistério azul do céu todo estrelado,
passaria mil anos sobre a Serra do Mar
Negra, imensa, disforme,
Enegrecendo a noite...
indiferente e inútil.
Já em Ungaretti obtemos uma visão clara entre o poeta e a operação poética, em que “o poeta nada mais faz do que ‘restabelecer com resoluta violência, nas funções de um simples vocábulo, o prodígio do efêmero” (Lúcia Wataghin após Ungaretti: “Daquela Estrela a Outra”, 2003). No entanto, não há a menor possibilidade de evidenciar qualquer comparação entre Carvalho e Ungaretti; apenas isto: uma espécie de “rigor à contra luz” que busca nas paisagens e céus o objeto primevo!
O Porto Sepulto
Eis que chega o poeta
e volta depois para a luz com seus cantos
e os despende.Desta poesia
me resta aquele nada
de inexaurível segredo.(Ungaretti, De uma estrela a outra)
Voltando ao meu poema de abertura
a subida da serra me decompõe
subida fria, apaga-mee para reconstituir os fragmentos
— e as paisagens —
à luz de horizontes tremidos
distâncias incorrigíveisdas portas d’água até a enseada
um braço de mar escondido.
Que sentidos pode-se depreender desse poema? Vejo alguns. O apagamento de si na subida atmosférica, a perda da referencialidade terrena e o eterno descanso do mar; talvez “um sono descuidado” invertendo a chave da violência xenofóbica de Carvalho na admiração do inglês, que atribui certa responsabilidade histórica aos poetas santistas de hoje.
O mar como signo mortífero, ou primeira morada do ser, segundo as teorias mirabolantes muito bem escritas e descritas por Otto Rank (1884-1939) em “O Trauma dos Nascimento”, (Das Trauma der Geburt: 1929), na segunda estrofe significa toda impossibilidade de morrer visto a lonjura do mar para aquele, que como eu, foi ensinado a valorizar condição de ‘insularidade”, isto é, de alguém que nasceu e cresceu numa ilha — a ilha de Santos! Para muitos santistas subir a Serra do Mar, rumo a São Paulo, representa a morte; e muitos hesitam entre morrer na praia ou numa ala médica sofisticada em Higienópolis.
Quando minha mãe estava no final sua vida me disse: “Pois bem, subo para morrer!” e assim foi; ao passo que meu professor de composição musical, centro da vanguarda artística de São Paulo, Gilberto Mendes, disse-me certa vez: “Seu eu subisse todos os dias para São Paulo, nessa minha condição, eu teria morrido quarenta anos antes.” À época ele estava beirando aos 90 anos; e acrescentou “Eu sou da praia"! Morro aqui!” E assim, foi. Faleceu em 30 de dezembro de 2015.
Daqui vamos ao terceiro verso que encerra um enigma: onde estará esse “braço de mar escondido”? será um delírio, ou às aguas penetrantes do oceano atlântico se infiltram no sopé da Serra, pelo caminho de Anchieta, e alcançam outros pontos? Será um braço escondido que traz os seus de volta, de onde quer que estejam? O mar, assim, é um chamamento à todos aqueles que ousaram um dia sair das águas inconscientes como se a elas não pertencessem.
E assim segue o segundo poema dessa coletânea, após um curto epiteto (mudas são muitas /coisas que brilham /umas, liminarmente / urdidas no véu-noitecido.
dos tornozelos à testa
torneio-me campeãoe quando arrefece-me os pés
urram afliçõesciscando silêncios
descem-me véuse sem luzes
sou o salto que se cala
na grama ressequida
nada…só um refrão.
Vê-se que o tema desses poemas orbita em torno de uma angústia seminal em face do temor de uma perda imensurável, a perda de si. É de onde o poema busca a memória como historicização de um contexto amplo, em que a perda do mar — como Freud diria, aquele espécie de “sentimento oceânico” que une as pessoas em êxtase — se revela um necessário processo de reconstituição de si.
e para reconstituir os fragmentos
— e as paisagens —
à luz de horizontes tremidos
distâncias incorrigíveis
E assim segue (e persegue) esse caderno (de poemas), elaborando diversas figuras do luto, alçando voos imemoriais rumo à herança insular apagada nas areias de praia.
me cala
a estrada estridentes
estrelasos ferros trepidando
siderúrgicasno quase limite
dos verdesme ouço puídas
auroras das muitase sobem-me eixos
entremeadas retóricas
pinos e
navegadas correntesafora
teu mundo estou
entre auroras.
Os 48 poemas seguintes, se desenrolam alternando imagens e centros-palavra.
cruzam correntes
aos ventos e lentesse entremeasse buscas
o navegante circundaria
ou ia circum-enfeixando
os brilhos nas cristas
e as luas
e os seus manuscritoscontudo
perder-se-ia na esperança
da quilha rasgando o mar.
Até então, o ano era 2018, e logo veio o corte pandêmico. Um corte brutal foi operado em nossa vidas. Como eu poderia manter poemas-paisagens em vista? cantar a perda do mar já não parecia lá muito relevante? Logo, elevei o tom da viragem e passei a trabalhar num novo caderno de poemas: “Poesilado”. A nota que abre o conjunto já soa bastante estranha para arriscar a sorte em concursos de poesia ou editais de publicação:
“Considero aqui que a poesia não flui no tempo, ao invés, tenta a todo custo interrompê-lo para firmar-se em extratos; os poemas aqui reunidos refletem essa tentativa audaciosa de circunscrever os tempos que me atravessam, confeccionando certos aparatos para sustentar uma ilusão essencial e fragrante. Alguns ficam retidos dias, meses a fio, até completar ciclos de insistência, e então morrem, definitivamente. Cristalizam-se hors-temp. É assim que inicia o verdadeiro trabalho, quando toda falsa nobreza de sentimentos cede lugar ao que resta de inaproveitável, não raro, insuportável. Desse modo, processa-se a transfiguração. Todo aquele material derrisório se converte em carvão para na “fogueira do intelecto” transparecer algo forte e inquebrável. Acredito firmemente que a boa poesia é aquela que busca vencer a morte entregando-se de braços abertos a ela. Conviver com o poema em flor é assisti-lo em sua morte, e fazer dessa estada uma verdadeira pulsão anárquica: a única possibilidade de vida.”
Os dois primeiros poemas que compõe um abertura em cinco tempos são o prenúncio da catástrofe. Esse caderno foi iniciado no início de 2020 quando a pandemia ainda estourava na Itália, e mal sabíamos o que nos esperava.
i.
poesilado me finjo estranho
ao que se move entre
montanhas de lixofito
coisa alguma
eis o meu limite:— sigo postulando
fingidos declíniosou veria o
mundo
que só estorna
defuntos por escrito.ii.
pois
poesia segue a via
indiscernível para
infinita
indistinta e
enquanto
a indústria social insta
iludidos
a transcreverem pífias ousadias
ao meio rasga pandemia
percevejo o fim.
Tenho para mim que este caderno inaugurou uma espécie de projeto metapoético no sentido de perscrutar a origem do poema por meio de uma autoanálise da poesia atravessada em meu corpo. Assim como a música, penso que a poesia seja um ato do corpo, sobre o qual intelecto se arvora para dar-lhe uma destinação diversa, sobretudo conexa. Podemos considerar também que o pensamento em torno da poesia, ou pensar poesia, atua como uma espécie de resistência a fim de prolongar o prazer ou ganho psíquico ao tratar da vida pelas lentes indeterminadas da palavra lançada ao poético.
Neste caso em que a poesia é também uma via de especulação de seus limites no cotidiano (que trouxe nesse poema acima como uma retirada de cena em recusa a postagem digital durante a pandemia), ela encarna um duplo propósito de ampliar o campo de enunciação do poético enquanto se faz poesia (Paul Valèry), e fornecer uma feição estética que coadune com a investigação dos meandros do poeta, essa fábrica ilusões admiráveis, quase mágica, não obstante rigorosa, de esculpir constelações de poemas no tempo.
Então, é voltado à questão do tempo que uma metapoética se instaura como forma de formular pensamento em poemas que resistam às viragens do atual — algo que no meu pessimismo endógeno, face à época em que vivemos, parece tender a uma via regressiva na adoção generalizada de uma poesia morna em quase tudo que nos chega pelos meios digitais. A palavra parece ter perdido sua potência de deflagração, sua propensão à combustão, aquele “fogo do intelecto” de Haroldo, sem nada instituir que não seja o canto monótono da pequenez de nossas vidas.
Contra esse reinstituição do mesmo, e a precariedade dos meios, surgiu-me essa consideração abaixo, e não sei mais se poema ou inflexão.
« palavras »
i.
uma zona escura
onde o poema não alcança — são as palavras
que pervagam a fonte eterna do claro — circum-velando
e
outra e uma luminescência à distância
— a criptografar estes versos incertos — ressaltar
coloridos reversos inaglutináveis
ecos
desconexão
continente de ideias… tudo que me retorna à luz.ii.
as palavras abrem espaços na pele frágil do tempo
enquanto é silêncio
perseguem e me ferem
perscrutam sensações isoladas
seguidamente… rasgam a membrana que encobre toda presença de ontem.iii.
e o que trago num poema nunca o sei
até que
as palavras consteladas
a intervalos puros
circunscrevam o
que me afoga no múltiplocontrapontos
pautas atravessadas
sugerem um piscar das pálpebras
e os olhos ilhados fixos
na brandura das imagens
desnorteiam os futuros
conforme as variações
renascidas em poema luzque venham à tona
nas franjas desse arranjo
de melancolias insinuantes
enquanto
na claridade do próximo
viverei neste espaço
restrito de hoje
agora
ou antes.
A associação vernacular entre luz e escuridão, tão repisada na literatura, tem aqui um silêncio trágico vinculado ao branco como morte. É na contraluz que a palavra, o poema sem forma, ganha um contorno provisório. Na faixa transiente em que a luz (backlight) espalha-se denunciando algo desvitalizado, sem brilho, um objeto inerte, é nesse ponto que a inflexão se dá e sou tomado a dar uma destinação ao que seria quase “inaproveitável”, ou de outro modo, quando há um mínimo de “brilho há coisa.”
ii.
há brilho há coisa
outras escolhas
a memória naufraga
territórios e posses escoam
à toa a toada ressoa
no aço viola um círculo
de bronze ou prata (se faz) no estalo da proa.
Neste outro poema continuado do primeiro caderno “Com Olhos de Menino Mudo” o mar e a memória ressurgem, na perda da “quilha rasgando o mar.” O brilho transiente nessa especulação em torno do contorno do objeto à contraluz (e por luz refiro-me aqui o metáfora de Giorgio Agambem, no ensaio “O que é o contemporâneo?”) tem uma outra relação com a mudez ou impossibilidade de dizer no lugar daquilo que não tem voz, conforme Francis Ponge (1899-1988) em um ensaio belíssimo, “Tentativa Oral” proferido numa conferência em Bruxelas a 22 de janeiro de 1947:
“Não sei se me faço entender; estou falando destas paredes, das tábuas deste assoalho, falo das chaves que vocês trazem no bolso, de todos esses objetos que nos acompanharam, ou que nos esperam aqui, e estão aqui conosco, e que devem se calar à contragosto — e dos quais não tomamos conhecimento nunca, sabem, nunca".
Em paráfrase pongênica, “o brilho” que trago em meu peito não o posso dizer. Essa imagem foi uma das que ficaram gravadas em minha mente ao ler esse texto, e a registrei em meu ensaio extenso, Apontamento de uma Prática Amorosa (2019), no qual exploro o delírio dos músicos, especialmente dentro do universo da arte tradicional do guqin. Esse ensaio em prosa, ao estilo de Ponge, foi compartilhado em uma leitura pública durante um dos encontros do grupo multidisciplinar de pesquisa que coordenei, o POEM (Poéticas Orientais em Música), realizado na Escola de Comunicações e Artes da USP no mesmo ano. Abaixo, segue um trecho desse trabalho:
“Compreendam bem essa minha dificuldade e como com ela eu me ajeito, em certo sentido, mudando as minhas perguntas. Tudo que trago aqui está em medida inversa ao que tento dizer, por onde aumenta-se a potência sensorial de meu fascínio, e espero que aumente o seu também, ainda que eu não seja bom com as palavras, me desculpe, e talvez ser escritor seja se dar muito mal com as palavras da ciência, ou pior: acreditar nelas, vá lá! e ainda porque, de fato, eu não acredito no absurdo das explicações tão elaboradas, tão objetivas, as pseudociências do homem que trata as artes como reflexos de suas ideias quando é o espelho que rebate suas dúvidas. E há muito disso nas explicações da arte da música: uma palavra nos diz do que se trata o seu significado em contexto com outras, mas nunca diz nada sobre em que sentido se dão as coisas que amamos em nós. As coisas se calam quando as palavras falam. Foi Ponge quem fez essa denúncia, e isso já tem uns 70 anos.
(…)
E desta maneira pouco honesta, fingindo teatralmente que sei algo de interessante para falar em nome das coisas mudas, e digo, falar a todos com o que deveriam se ocupar e dizer a si próprios, arrogantemente dar a eles o que pensar. Mas o pensamento nada tem a ver com as coisas; pensamento em si é só mais uma e outra coisa: às vezes é um sujeito tardio, e que chega atrasado em todos os encontros. Então, o que tenho para dizer é sobre este encontro, ou a forma como encontramos, ou antes, sou eu que me encontro com as coisas. E isso, sabe, exige silêncio. Exige respeito por aquilo que está quieto, mudo. Mas pensem que este silêncio não se confunde com a ausência; este silêncio é a vida latejando, nas cores, nos perfis das casas, no céu trafegado por nuvens, nos mares, nas águas de um rio, nas bocas hesitando palavras, nos gestos daquela moça em seu silêncio sob a xícara de café, são as cadeiras deste salão, os carros passando sem vozes, os pássaros deslizando no céu raiado, as chaminés dos navios lá fora, os cordames, os homens, o veludo crespo das ondas. Os silêncios, vejam, estão entre as palavras. Como Merleau-Ponty a certa altura disse: “pois cada palavra só deve o seu sentido ao jogo de todas as palavras entre si e, portanto, conterá sempre uma parte de silêncio. Pois uma palavra, uma frase jamais designarão a própria coisa. (...) Como o pintor que, pelo jogo das cores, faz nascer a coisa, uma paisagem que as preocupações humanas escondem de ordinário, assim o poeta, pelo uso criador da linguagem, pode acabar por estar ‘rodeado de sentido.’”
É como essa definição da palavra “lúmen”, vejam só: “unidade de fluxo luminoso do Sistema Internacional, definida como fluxo luminoso emitido por uma fonte puntiforme com intensidade uniforme de uma candela, contido num ângulo sólido de um esferorradiano [símb.: lm ].”. E por sua vez, ‘candela’ que é apenas uma tocha, um brilho no escuro, se diz assim: “unidade de intensidade luminosa do Sistema Internacional, definida como a intensidade luminosa de uma fonte emitindo, numa dada direção, radiação monocromática numa frequência de 540 x 10-12 Hz com uma intensidade de 1/683 watt por esferorradiano [símb.: cd ].” Há muito silêncio a volta dessas palavras, que preservam a luz indizível projetada do alto de uma montanha, vazando a neblina, atiçando os faróis, piscando, revelando uma terra estranha, uma colina, tantas coisas se escondem a volta dessas palavras para dizer o que queremos — “Luz e Silêncio”
Assim, “há brilho há coisa” refere ao silêncio, de onde a escuta como instrumento, como recurso artesanal — daí o poema de Juan Brossa com que abri esse texto — atua para restaurar o brilho das coisas mudas, restituir-lhes sentido, afastando-me do terror da positividade toxicopoética.
Mais um exemplo meu segue abaixo:
« fuga e refúgio diante paisagem perdida »
i.
há forma no idílio
sonoras provisões que informam
a cada mata fechada, a cada clareira inexata
o risco sonoro da aventura
— densa-bravata de ofertar a quem
(a outro antes de mim) se reserva
ao brilho das florestas perdidas.(…)
v.
navegados sentidos perdem no brilho
todos os ruídos — e há quem diga
“siga” para nunca mais ouvi-los!
mas cada brilho prescrito,
repousado, flutua a meia medida
das palmas que colhem coisas
do antigo. Saberá como refazer-lhes
a reescritura, forjar outros inícios?
Chegando a um desfecho provisório, assim como Bressa, segundo Gloria Bordons citada ao início desse texto-itinerante — “Brossa nega discursividade lógica a e joga com as palavras e com as associações fônicas. O centro cabal da sua poesia é a palavra. É no entorno deste elemento que ele organiza poema.” — enquanto música carrego em mim anos de estudo musical e desenvolvimento de práticas contemporânea de escuta, de modo que minha atenção (e tensão) voltada ao som, ao multiverso fônico das palavras tem um poder organizativo. Seja um problema para os poetas e as intermináveis discussões e recenseamentos da poesia, o que deve ou não entrar em recesso, e faltar às coletâneas de nosso tempos, o som insiste! Com isso, fecho aqui essa pequena viagem a curadoria poética de mim mesmo.
devo cantar
ou riscar palavras?
entoar
ou sublinhar o som?
pronunciar
ou verter sonora-
mente o processo-palavra
… auscultar?
quem sabe
hesitar.e apontar enquanto
precisamente o senso em riste
seja umas das faces da luta!talvez… desparasitar o sopro ávido… as falsas denúncias… verter-se por declínios em corpo convulso… reverter as palavras ao princípio do som.
A você que chegou ao final desse texto deve ter percebido que tudo quanto foi dito aqui se trata de associações livres. E quanto a isso eu digo, a poesia não é uma afirmação de teses, mas uma renúncia a todas elas para que um mínimo de liberdade e rigor possam coexistir.
Obrigado pela leitura!