A pergunta é esta: quando ficarem em causa os fundamentos institucionais, científicos, éticos, políticos e os pilares de relação de inteligência homem-máquina entrarem num novo paradigma, que lugar ocuparemos nós como seres humanos? O que passará a ser um humano?" (Lídia Jorge, escritora portuguesa)
Há uma semana atrás, um mal-estar começou a se apoderar de mim, de um jeito que faz tempo eu não sentia. Não havia um motivo específico… apenas uma indisposição silenciosa para investir energia nas coisas que costumo fazer: um desinteresse progressivo momentâneo.
Acredito que seja efeito do mal-estar no mundo: o genocídio em Gaza, o cinismo dos governantes, a sociopatia generalizada da política brasileira e internacional, que nos arrasta para baixo, como uma maré pesada.
É impossível não se comover com as imagens em tempo real: crianças esquartejadas, mulheres estiradas nas ruas como carcaças de peixe largadas na areia. É igualmente impossível não exalar um ódio profundo diante de figuras como Trump, Elon Musk, Netanyahu, Bolsonaro.
Tudo isso contamina. Corrói a capacidade de resiliência. Produz sintomas de uma desesperança endêmica que nos atravessa mesmo quando tentamos desviar o olhar..
Vivemos numa economia de afetos vampirizada pelas microsferas digitais, onde somos drenados a todo instante. Estranhamente, isso me faz lembrar o primeiro ano da pandemia, quando éramos tragados por uma depressão social compartilhada em escala global, retroalimentada pelas redes.
Diante disso, desconectar ainda parece ser uma das poucas saídas. Mas sejamos honestos: funcionar isoladamente não basta. Será que conseguimos construir uma política pessoal para lidar com a medida do quanto podemos e queremos ser afetados?
As mídias digitais não cessam de intensificar e projetar suas características predatórias sobre nós; especialmente agora, com o advento da economia da intenção, que já começa a esboçar seus contornos. Em breve, nem precisaremos mais nos emputecer com os feeds ou atualizar em tempo real nosso desgoverno. As IAs estarão prontas para nos informar quais ações tomar, em qual direção, com que intensidade e com que “sentido”.
Por isso, não basta desconectar. É preciso mobilizar-se para impedir — ou ao menos minimizar — os efeitos dessa captura pelos meios digitais. Uma das saídas possíveis é direcionar nossa energia vital aos laços reais, aos gestos mínimos de cuidado, à vida criativa que ainda resiste entre nós, mesmo quando o mundo parece desabar.
Fortalecer nossas redes interpessoais talvez seja uma das poucas estratégias ainda disponíveis. Minha esposa, por exemplo, em vez de se afundar nas notícias sobre Gaza ou sobre o regime ditatorial que se insinua nos Estados Unidos, dedica sua energia a dar aulas de alfabetização para adultos. Isso já vale muito.
É claro que tal postura pode gerar críticas, especialmente quanto ao grau de “alienação” autoinduzida. A minha, por exemplo: a tentativa de viver minimamente distanciado dos horrores do mundo contemporâneo, se é que isso ainda é possível.
Sobretudo numa cena política progressista que parece ter desaprendido a sustentar vínculos: produzindo ódio e repulsa entre os seus, preferindo se encastelar nas divergências de pauta, lutando uns contra os outros com a menor empatia possível.
Como disse recentemente a antropóloga argentina Rita Segato, diante da impotência que nos atravessa neste cenário brutal, onde os donos do poder massacram quem quiserem e ninguém faz nada: “Hoje prefiro me dizer ex-humana.” Devo confessar que estou entrando para o mesmo time
O ponto crucial, agora, é este: quem — ou o quê — seremos daqui em diante? Como apontou magistralmente a escritora portuguesa Lídia Jorge, que tive a felicidade de ouvir pessoalmente aqui em Brasília:
"A pergunta é esta: quando ficarem em causa os fundamentos institucionais, científicos, éticos, políticos e os pilares de relação de inteligência homem-máquina entrarem num novo paradigma, que lugar ocuparemos nós como seres humanos? O que passará a ser um humano?"
E ela prossegue:
"O conceito de representatividade respeitável da figura do Chefe de Estado, oriundo do povo grego — princípio que sustentou a trama purificadora das tragédias clássicas, a que se juntou depois o princípio da exemplaridade colhida dos Evangelhos —, essa conduta que fazia com que o rei devesse ser o mais digno entre os dignos, está a ser subvertida.
A cultura digital subverteu a regra da exemplaridade. O escolhido passou a ser o menos exemplar, o menos preparado, o menos moderado, o que mais ofende."
Isso me fez pensar que, por enquanto, somos apenas esse acúmulo tardio de afetos e desencontros, à mercê das formas tecnológicas de monetização da nossa estrutura psíquica e emocional. Enquanto não aprendermos a nos desembaraçar das forças que nos capturam a cada instante, não haverá futuro alternativo: apenas constructos esvaziados de potência, simulacros de existência sem desejo, sem enraizamento, sem dinamismo.
Talvez não seja mais possível sonhar com um futuro grandioso. Mas talvez ainda seja possível construir pequenos lugares, pequenas pausas existenciais, espaços onde a confiança, o acolhimento e a invenção do comum ainda possam florescer, mesmo entre os escombros.
E acho que isso ainda pulsa nos gestos mínimos: no cuidado íntimo com os afetos que resistem à lógica da produtividade e escapam à precificação digital. Pois esse futuro — como disse outro dia Bob Fernandez — não está dado. Ainda não é um jogo jogado.
Em tempos de IA e homens robôs textos assim são um respiro ótimo. Obrigado!