A Inteligência Artificial e a Nova Economia da Intenção [01]
Por que o debate público ainda discute algoritmos enquanto a IA já prevê nossos desejos
O debate público sobre a inteligência artificial parece interminável, ou ao menos enquanto perdura o fascínio e a repulsa — um dualismo característico de todo culto religioso.
Num artigo recente do Ted Gioia1, Tens of Thousands of AI Users Now Believe ChatGPT Is God: Is this mental illness—or the next major religion?, postado em seu Substack The Honest Broker, ele reflete sobre os fanáticos tecnológicos que inundam o Vale do Silício com profecias baseadas em uma IA divina. Ted comenta, para esses fanáticos, a inteligência artificial se tornou um representante 24/7 da salvação.
Um caso recente na terra do Tio Sam, país das maiores aberrações capitalistas, onde qualquer ideia exdrúxula faz circular milhões de dólares, confirma essa tendência.
Um camarada branco, chamado Bryan Johnson, atua como empresário no setor de tecnologia. Ele anuncia em sua rede social que está separando o plasma do próprio sangue e reinjetando-o no corpo para reverter o envelhecimento e “otimizar” o corpo com tecnologias de ponta. E vai além:
“I am no longer injecting my son's blood. I've upgraded to something else: total plasma exchange.” (Não estou mais injetando o sangue do meu filho. Agora estou fazendo outra coisa: troca total de plasma).
Trata-se do movimento conhecido como “biohacking”, no qual indivíduos tentam “hackear” o corpo e prolongar a vida. São justamente desses tipos e seus seguidores que Ted ironiza, convocando os cultos milenaristas, nada mais do que uma versão dos antigos cultos esotéricos na virada do milênio — o basilisco de roko, a terceira onda, YK2 e etc —, que anseiam loucamente pela Grande Ruptura.
E assim parece que estamos numa encruzilhada entre afirmar as viradas tecnológicas entre sua necessidade ou seu valor destrutivo para as relações humanas. Não é diferente com a inteligência artificial. Há uma grande comoção. Mas muitas discussões parecem soar anacrônicas, ainda pautadas por paradigmas tecnologicos anteriores.
Os debates que acompanho (e dos quais participo) continuam centrados nas problemáticas dos algoritmos de filtragem e seleção de conteúdos; um paradigma anterior, que alcançou seu ápice na modelagem de comportamentos em redes sociais, enquanto a IA já representa um salto evolutivo gigantesco. Porém, não estamos mais apenas diante da filtragem de conteúdo conforme perfis de usuário, que gerou as chamadas “bolhas” — outro paradigma antigo, de cinco anos atrás.
É verdade que o algoritmo das plataformas sociais se tornou dominante entre 2013 e 2023, referindo-se a regras e protocolos para personalizar conteúdo. Mas a IA, no estágio atual, vai além: é regida por lógica algorítmica maleável, capaz de aprender com dados, fazer previsões e tomar decisões.
Antes chamada de machine learning, esta arquitetura não é exatamente nova, mas o que sistemas como ChatGPT, Gemini e DeepSeek trouxeram foi um grau de complexidade tal que estamos à beira de uma transformação radical: daqui pra frente a IAs serão capazes de prever as intenções do usuário antes mesmo da interação ou do pedido. Este é o próximo passo, já em curso.
Átila Iamarino, em vídeo recente intitulado A Inteligência Artificial sabe seus desejos antes de você, alerta para essa mudança: estamos ingressando em uma “economia da intenção”, na qual IAs não serão apenas ferramentas de diálogo, mas de sugestão. Como declarou um diretor de produto da Shopify em evento da OpenAI:
“Agora estamos começando a entender a intenção do usuário. Vamos prever a intenção, prever a ação, e automatizar a intenção, sugerindo caminhos e ações antes mesmo da interação.” E, nas palavras do CEO da Nvidia: “O principal uso do futuro é um grande modelo de linguagem no frontend de quase tudo. Cada aplicativo, cada banco de dados; sempre que você interagir com o computador, provavelmente estará primeiro engajando um grande modelo de linguagem. Esse modelo descobrirá qual é a sua intenção, o seu desejo, o que você está tentando fazer, e apresentará informações da melhor maneira possível.”
Uma das implicações críticas é a exponencialização da fabricação de sujeitos acríticos: estaremos mais próximos do abismo existencial sem perceber. Indivíduos que antes eram moldados por algoritmos de redes sociais — muitas vezes estimulados pelo ódio e ressentimento — não precisarão mais consumir feeds para alimentar sua pequenez hodienta; a IA o poupará desse esforço, prevendo e mobilizando o usuário em determinada direção.
Isso quase confirma a hipótese de Miguel Nicolelis: “As máquinas não irão substituir o homem. É justo o contrário. Os homens é que vão substituir a máquina”, pois nosso sistema neurológico se adaptará com facilidade ao modo máquina, e nossas escolhas tenderão a ser modeladas por esse novo padrão.
Embora exercícios de futurologia sejam sempre catastróficos, vale refletir: quando debatemos uma nova tecnologia, estamos quase sempre retroagindo, presos ao paradigma anterior, incapazes de perceber o presente como potência de futuro.
Obviamente, o futuro não está dado, mas o ritmo das forças que impulsionam o desenvolvimento tecnológico a serviço do capital é mil vezes mais veloz que nossa capacidade de apreender o presente, que invariavelmente já se tornou passado. Essas mudanças não são apenas rápidas, são vertiginosas; e habituar-se a essa vertigem não é para qualquer um.
Sem dúvida, a recusa pessoal e localizada às “ferramentas milagrosas” da tecnologia é legítima, até saudável. Mas, como bem ironiza Ted Gioia:
“Even if you shut off your devices, they will probably start knocking at your door—because that’s where all the cults arrive, sooner or later.” (Mesmo que você desligue seus dispositivos, eles provavelmente começarão a bater à sua porta, pois é lá que todas as seitas chegam, mais cedo ou mais tarde.)
E aí que devemos voltar nossa atenção, e buscar compreender como as IAs já mudaram o nosso mundo! Não vejo muito sentido em entrar fugas teóricas, crendo na hipótese de uma chave restauradora do processo social, ou forma de reversão do que já está infiltrado até a medula, ou criar formas de mitigar seu uso, que embora legítimas, deixam muito fora de foco.
Por exemplo, as vinculações afetivas de usuários com chatbots que estão progressivamente ocupando o lugar de profissionais de diversas áreas, por exemplo, pessoas preferindo fazer terapia com ChatGPT, ou sustentando conversas de amizade com bots. E este é apenas um exemplo dentre um amplo leque de relações que já está presente na rotina de muitos.
As IAs não são mais passatempos para atenuarem as inquietudes e incertezas da vida — são recursos viáveis, dispositivos omniscientes que tudo lembram, e tudo moldam numa comunicação afetiva, embora artificial. Elas nunca faltam ao encontro e sempre tratam você muito bem, e muitas vezes com mais empatia do que um ser humano. Algo que já constitui um sério problema, tendo em vista que qualquer relacionamento que se queira maduro precisa do confronto, da negação, da alteridade, do contraste como outro. Mas este é um assunto para um próximo texto.
crítico de jazz e historiador musical americano
No momento teve uma coisa que me agradou, o uso da ferramenta como algo estruturalmente debochado, tipo os brainrots italianos, por exemplo, de coisas que não fazem sentido e são ridículas como um escancarar da facilidade bizarra que é criar tais imagens. Para narrativas surrealistas ele também é ótimo.
Achei muito pertinente suas reflexões sobre o impacto da IA na cultura.
Gostaria de complementar que, além dos desafios e oportunidades que você tão bem abordou, a questão da autoria e originalidade no universo da IA é algo que me intriga bastante. Eu mesmo utilizo bastante a IA para gerar imagens (desenhos) e mensagens de felicitações. A diferença é que sempre solicito à IA que gere esses conteúdos com pontos específicos que caracterizam meu ponto de vista e olhar. Isso levanta a questão: como diferenciar o que é genuinamente humano do que é gerado por uma máquina, especialmente em obras de arte ou literatura? E como isso afeta o valor intrínseco que atribuímos a essas criações?
Parabéns pelo excelente artigo, que nos convida a pensar criticamente sobre o futuro da nossa cultura na era da inteligência artificial!